terça-feira, 27 de setembro de 2016

Trabalho em equipe e mobilização na UTI

Trabalho em equipe permite alto nível de mobilização em pacientes críticos [1]
Hickmann et al. Ann. Intensive Care (2016) 6:80
A abordagem neuro-músculo-esquelética realmente é a menina dos olhos das publicações. Eis mais um paper discorrendo sobre esse tema tão fisioterapêutico que aqui comento.
A mobilização “precoce” (antes do tempo?) em pacientes criticamente enfermos tem sido ultimamente associada à prevenção das sequelas trazidas pelo imobilismo. O estudo observacional que trago à tona [1] procurou demonstrar que a mobilização realizada nas primeiras 24 horas de internação na UTI provou ser viável e bem tolerada na grande maioria dos pacientes. Através dela, traduzida numa sistematizada série de atividades físicas funcionalmente progressivas, somos capazes de induzir respostas fisiológicas auxiliares à ventilação pulmonar, circulação central e periférica, além do metabolismo muscular esquelético e estado de alerta do paciente.
No artigo em pauta, durante as manhãs, uma equipe multidisciplinar (médicos, fisioterapeutas e enfermeiros) avaliou cada paciente a fim de identificar as limitações à mobilização, cada um em sua respectiva área de conhecimento. Em seguida, iniciou-se um protocolo de atendimento constituído por exercícios de resistência passiva, ativa ou manual, cicloergômetro ou leg pres, prancha ortostática e caminhada assistida. Essas atividades foram selecionadas dependendo do nível de consciência dos pacientes, condição hemodinâmica e estabilidade respiratória. Os níveis de sedação/analgesia foram suficientes para a manutenção de um RASS entre +1 a -1. Um total de 709 pacientes foram incluídos no estudo, dos quais 327 necessitavam de assistência ventilatória mecânica.
Atividades foram interrompidas pela equipe médica ou enfermagem em onze casos, e a pedido do paciente (dor, alto esforço percebido, ou aceleração do trânsito digestivo) em oito casos. Os eventos adversos ocorreram em 10 intervenções, representando 0,8% de mobilizações totais, apontando para a segurança durante abordagem neuro-músculo-esquelética da mobilização. Todos os eventos foram reversíveis após a interrupção da atividade, exibindo nenhum impacto sobre evolução clínica. Também não houve evidência de hipóxia tecidual induzida, confirmado por meio de níveis de lactato estáveis após a mobilização.
Apesar do crescente corpo de evidências que confirmam a viabilidade, segurança e melhor resultado apresentado pela mobilização dita precoce, ela ainda continua a ser uma prática incomum em muitas UTIs. Além disso, o tempo de início da abordagem pode variar significativamente na literatura de 1,5 a 2 dias a até vários dias após a intubação, ou mesmo semanas após a admissão na UTI.  
Quanto aos critérios de segurança para mobilização precoce, o uso de vasopressor, a entubação endotraqueal, ou mesmo suporte de vida como a ECMO não devem ser considerados contra-indicações para a mobilização ativa. Até o momento, não há consenso sobre doses de drogas vasoativas ou FiO2 máxima, consideradas como seguras para iniciar a mobilização ativa. Alguns autores consideram a dose máxima de noradrenalina de 0,2 ug kg-1min-1e FiO2 <0,55 ou 0,60 para ser seguro [2,3]. Outro ponto importante é que se tem demonstrado que a mobilização pode ser iniciada em pacientes de cirurgia abdominal de grande porte, pacientes que muitas vezes são excluídos deste procedimento. Em relação à abordagem dos pacientes inconscientes e gravemente enfermos, a mobilização passiva foi associada à um variação insignificante no consumo de oxigênio e parâmetros hemodinâmicos.
O que chama atenção é que um fator limitante para a mobilização apontado no estudo é a capacitação profissional refletida na quebra do protocolo, onde houve a não realização da conduta em 28% dos finais de semana e 12% durante a semana, uma vez que a ênfase foi colocada em exercícios menos demorados (Mais fáceis? Será que não sabemos mobilizar ou não temos tempo de?). Com base neste estudo, estimou-se uma proporção ideal de fisioterapeutas para cada paciente de 1 para 7 inclusive nos finais de semana de modo a atingir o número ótimo de atividades diárias estabelecidas no protocolo.
Além disso, a grande maioria dos pacientes foram movidos para fora da cama pela equipe de enfermagem nos fins de semana. Isto confirma a observação que uma abordagem teamwork para o protocolo é factível a fim de garantir o máximo de mobilização, mesmo na presença de um número limitado de fisioterapeutas.
Cabe uma reflexão pormenorizada dessa parte do estudo, quando lanço alguns pontos no mínimo interessantes: 1-Será que estamos subdimensionados quando escravizados pela RDC-7 atingimos a proporção de 1 fisioterapeuta para 10 pacientes onde inclusos estão a abordagem respiratória e neuro-músculo-esquelética? 2-Será que os times de mobilização, absorvem atribuições exclusivas da fisioterapia a qual detém no mínimo a expertise da conduta, mascarando a real necessidade do serviço no quesito quantitativo de fisioterapeutas? Precisamos rever...
De fato, o estudo evidenciou que uma maior quantidade de pessoal foi necessário para mobilizar os pacientes para fora da cama, transferindo-os para a poltrona. 
A sedação profunda é geralmente associada com mobilidade limitada. No estudo em pauta foi observado uma menor taxa de transferência cama-cadeira para pacientes com uma pontuação RASS <-1.  No artigo, as pontuações RASS variaram entre -1 e +1, permitindo perfeitamente que os pacientes interagissem com o fisioterapeuta, se comunicando e se auto-regulando em relação ao exercício imposto tanto em intensidade quanto duração. 
Em linhas gerais este estudo tem algumas limitações. Em primeiro lugar, foi realizado num único local, em uma UTI com uma forte cultura tanto de mobilização como de sedação mínima, podendo assim revelar-se difícil extrapolar os resultados para outros centros. Em segundo lugar, no desenho do estudo, a força muscular e outros resultados funcionais não foram avaliados. O efeito protetor da mobilização deve ser confirmado por testes controlados e randomizados e por fim, não houve a inclusão de pacientes isquêmicos ou com insuficiência cardíaca.
Em suma, observou-se que a mobilização iniciada no momento oportuno “o quanto antes” é bem tolerada na vasta gama de pacientes críticos. É importante notar que os pacientes relatam experiências muito positivas e sentimentos de bem-estar na sequência de diversas modalidades da abordagem neuro-músculo-esquelética.
A mobilização humaniza, cuida, e traz função, mas, na minha humilde visão, ainda precisa ser mais precisa, para quem precisa.
Alexandre Roque
Fisioterapeuta.

Referências:
1- Hickmann et al. Teamwork enables high level of early mobilization in critically ill patients. Ann. Intensive Care (2016) 6:80.
2- Burtin C, Clerckx B, Robbeets C, et al. Early exercise in critically ill patients enhances short-term functional recovery. Crit Care Med. 2009;37(9):2499–505
3- Hodgson CL, Stiller K, Needham DM, et al. Expert consensus and recommendations on safety criteria for active mobilization of mechanically ventilated critically ill adults. Crit Care. 2014;18(6):658.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Podemos confiar na literatura científica?

Podemos confiar na literatura científica?


Como devemos avaliar um artigo novo que saiu na revista X de fator de impacto Y? Recentemente cursei uma disciplina no mestrado chamada análise crítica da literatura que me fez refletir sobre o que realmente estamos lendo e se verdadeiramente podemos acreditar no que foi publicado, uma vez que ao publicar um “paper”, o mesmo passa por várias avaliações de editores e tal. Com o acesso cada vez mais facilitado, são publicados artigos, editoriais, cartas ao leitor em diversos jornais, revistas e periódicos, porém nem sempre as informações contidas são confiáveis. Cerca de 10-15% do material publicado comprovam ser de valor científico1. Cabe a nós, profissionais de saúde, adquirirmos o hábito de julgar a qualidade de uma pesquisa para decidirmos se tais resultados são realmente válidos.
Podemos usar alguns critérios para a avaliação, como a hipótese proposta não devidamente testada, o tipo de estudo incorreto em relação aos objetivos, tamanho da amostra insuficiente, análise estatística incorreta ou inapropriada, conclusões não suportadas pelos resultados, desfechos seletivos, dentre outros vieses cometidos pelos pesquisadores  que devem ser detectados pelo leitor.
Abaixo segue um roteiro com pontos essenciais a serem checados e os principais motivos pelos quais os artigos são rejeitados para publicação propostos por Crato et al., 2004.2
Diante disso, devemos nos familiarizar com as principais pontos a serem checados quando estamos lendo um artigo e com a experiência adquirida pela prática da leitura crítica, construir uma habilidade de ler e julgar.

Roteiro com pontos essenciais a serem checados

1. O artigo descreveu um problema clínico importante ou foi dirigido por uma pergunta claramente formulada?
2. Como a colocação e os assuntos foram selecionados?
3. Quais foram os objetivos do investigador, e se estes foram alcançados?
4. Quais os métodos utilizados pelo autor, e estes são descritos com bastante detalhe?
5. Os métodos usados pelo autor para analisar os dados e as medidas de controle foram bem implementados?
6. Os resultados possuem credibilidade, e nesse caso, eles são importantes clinicamente?
7. Que conclusões foram tiradas, e elas são justificadas pelos resultados?
8. O assunto abordado apresenta uma revisão sistemática?
9. O tipo de estudo usado está adequado?
10.A metodologia está apropriada à pesquisa?

Por que os artigos são rejeitados para publicação?

1. O estudo não focalizou um assunto científico importante;
2. O estudo não era original (outra pessoa já tinha feito o mesmo ou um estudo similar);
3. O estudo não testou a hipótese do autor;
4. A metodologia do estudo não está adequada;
5. Dificuldades práticas (recrutar os participantes, por exemplo) levaram os autores a comprometer o protocolo de estudo original;
6. O tamanho de amostra era muito pequeno;
7. O estudo estava descontrolado ou inadequadamente controlado;
8. Aanálise estatística estava incorreta ou imprópria;
9. Os autores tiraram conclusões injustificadas dos dados;
10. Há um conflito significante de interesse (um dos autores, ou um patrocinador, poderia beneficiar financeiramente da publicação do artigo);
11. Artigo redigido de forma inadequada, tornando- se incompreensível.

Karoline Richtrmoc
Fisioterapeuta intensivista.

Referências

1.       Pattussi PM.; Freire MCM. Leitura crítica de artigos científicos. In: Estrela C. Metodologia científica: ensino e pesquisa em odontologia. São Paulo: Artes Médicas, 2000: 308-25.

2.       CRATO, A.N. et al. Como realizar uma análise crítica de um artigo científico. Arquivos em Odontologia, v.40, n.1, p. 1-110, jan-mar. 2004.